sexta-feira, 29 de outubro de 2010

IMPRESSÃO DE LEITURA I

LEITE DERRAMADO
Chico Buarque (2009)

Por Jr.

Minha relação de leitura com “leite derramado” se deu basicamente em quatro "encontros" viajando de carro e tentando marcar as lembranças para escrever depois. O primeiro foi como sempre, mágico. Ver a capa, sentir a textura (qualquer semelhança com “84 Charing Cross Road” não é mera coincidência) aquela coisa boa de pegar no livro pela primeira vez, aquele tesão bibliófilo. A cor laranja nunca me agradou muito, mas no livro gostei. O título me trouxe à lembrança logo de relance uma historinha que li na infância (acho que é de Esopo e foi adaptada por Monteiro Lobato mas não me recordo exatamente) que contava sobre uma menina que vinha fazendo mil e um planos sobre o que faria com o leite que ia carregando: o venderia, compraria isso, depois aquilo, depois aquilo outro, até que, zás!, tropeçou e derramou todo o leite e com ele todos aqueles sonhos....

Isso me veio num estalo “– Esse livro vai falar sobre alguém arrependido” pensei comigo.

Primeiro pensei em escrever citando ponto por ponto, as inúmeras impressões que tive, achei que ficaria extremamente extenso por vários motivos e então resolvi contar somente as impressões mais fortes e visíveis. Não obstante, é devido afirmar que mesmo assim não são poucas. Seria um lugar comum prever que num livro escrito por Chico Buarque se ouviria ressoado, temas, estilos e formas de suas letras e músicas? Inevitável. E isso não é ruim (fora a previsibilidade) já que em termos de composição a sua genialidade é inegável.

A forma de contar a história e a escolha do narrador me animou, sempre gostei desses relatos cheios de sinceridade de personagens decadentes ou insanos (ou ambos). Eulálio da Assumpção, narrador da trama, carrega ao mesmo tempo as duas características: se a idade avançada e as doenças já o fazem decadente por natureza(física) ele também está pelo mesmo motivo, em vários momentos do seu relato, num estado de insanidade(confuso, perdido, incoerente).

Bom, acho que a primeira reminiscência importante de citar que me assaltou ao começar a leitura foi causada pela, mesmo que embaralhada e confusa, memória do narrador centenário. Ele se recorda de detalhes de sua infância, sentimentos sutis em momentos banais, muitos desses exemplos ocorrem no decorrer de todo o texto “Balbino pronto me obedecia (...) Acontecia de ele alcançar tal manga, e eu lhe gritar uma contra ordem, não é essa, é aquela mais na ponta”(BUARQUE, 2009 p. 19).

Me lembrei repentinamente do narrador de “O Primeiro Homem” de Camus que em situação completamente antagônica desse outro narrador dizia

A memória dos pobres já é por natureza menos alimentada que a dos ricos, tem menos pontos de referência no espaço, considerando que eles raramente saem do lugar onde vivem, e tem também menos pontos de referência no tempo de uma vida uniforme e sem cor [...] se desgasta com as dificuldades e o trabalho, esquece mais depressa sob o peso do cansaço. Só os ricos podem reencontrar o tempo perdido. Para os pobres, o tempo marca apenas os vagos vestígios do caminho da morte.” (CAMUS, 2005, p. 80, 81)

O narrador de Leite Derramado teve pelo menos durante um tempo uma vida abastada, de um luxo que poucas pessoas podem se lembrar. O fato de essa situação ter começado a mudar com a morte do pai o faz se agarrar ainda mais fortemente às sua lembranças, ele as retém por desespero de manter a pompa do passado, a imponência, o poder do nome, e não por boa memória. O narrador de “O Primeiro homem“ se esquece, por que lembrar (para ele) é sofrer.

De certa forma o antagonismo entre esses dois narradores se mantiveram na minha mente durante toda a leitura do livro de Chico Buarque, os crassos motivos das lembranças, sempre resquícios inacabados por forças de acontecimentos que lhe escapam em um, e fragmentos saudosos de orgulho, rastros de uma genealogia de canalhas, história, poder e derrocada no outro.

Tudo que falei aqui se refere muito mais à própria memória(do personagem/narrador) do que propriamente à sua índole. Na minha opinião o autor trabalhou muito bem com esse personagem. As obras que senti o vagar de influência no texto de Chico são todas obras de grande valor reconhecido pelo cânone literário mundial (sem mais delongas sobre isso já que imputar agora ao leitor uma discussão sobre o “valor” de obras literárias seria um tanto absurda). Camus(O primeiro Homem), Sartre(A Náusea), Proust(Em Busca do Tempo Perdido, mais precisamente o último livro da série “O Tempo Redescoberto”), e por último e fechando as impressões mais fortes que tive, me lembrei e achei incrível a semelhança (em termos de significado) com o filme “Sunset Boulevard”(no Brasil “O Crepúsculo dos Deuses”). Vale lembrar que quando falo de impressões, semelhanças, ao citar as obras anteriormente, não estou dizendo que Chico Buarque se inspirou nessas obras, que possuem elementos confundíveis ou algo assim, o que digo está mais ligado a sensibilidades da memória, é mais como quando se olha para uma pintura de Matisse e percebe aquele tom de vermelho que lhe lembra Picasso. Já tendo falado sobre a impressão e os motivos dela no caso de “O primeiro homem”, farei agora o mesmo com as demais, uma por vez.

Antoine Roquentin - personagem do livro “A Náusea” – dentre tantos outros elementos que ele “constata” para a falta sentido na existência, elementos que apenas mantém iludido o homem de que sua condição é aceitável, explica um que ele chama de “captura do tempo” este está assim ligado essencialmente à memória. Segundo a sua constatação, o ser humano tende a organizar na memória as lembranças de uma forma que tudo o que ele viveu, por mais fugaz e tolo, pareça de um modo geral trechos de uma trajetória sublime, que o leva infalivelmente a um final glorioso, ou pelo menos digno. Pois bem, essa “teoria” de Antoine é claramente exemplificada pelo personagem narrador de “Leite Derramado”, ser de uma história que além de algumas excentricidades burguesas não tem nada de gloriosa, mas o mesmo insiste em recordá-la, em expressá-la até a exaustão, tendo ou não um interlocutor atento, mas com desejo de que esta se transforme em uma publicação para a posteridade, “Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí?” (BUARQUE, 2009 p. 7) desejo de perenidade que mais ainda reforça o caráter de valor que o mesmo atribui à sua trajetória de vida.

Outro lugar-comum. Não é difícil encontrar comparações entre qualquer texto que esteja relacionado a tempo e memória e a obra de Proust. O que considero muito arriscado. Ao meu ver, empreender em qualquer tipo de comparação com “Em busca do tempo perdido” deve ser feita com o máximo de cautela, pelo risco de incutir em um engano tão grande quanto a obra de Proust. Proust fez um dos grandes achados da literatura mundial, ele criou a grande aventura da memória, transformou essa memória em palavras. Ele não só trouxe juntamente com essa memória os elementos visíveis da história passada, mas também aquilo que é invisível e particular de cada indivíduo em suas reminiscências: o imaginário das sensações, sentimentos e emoções quem também compõem as lembranças. Outra impressão causada pelos detalhes das lembranças de Eulálio da Assumpção, quase sempre ricos em sensações e emoções, como quando ele se recorda do que sentiu quando Matilde falou com ele na Igreja, e mesmo o que ele já estava sentindo só de vê-la à distância.

Por último dentre essas selecionadas impressões que tive ao ler “Leite Derramado” digo esta que nem é uma impressão advinda de uma obra literária mas cinematográfica. Esta impressão se construiu em mim desde o final do primeiro capítulo quando Eulálio num sublime ensejo de melancolia diz Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.” (BUARQUE, 2009 p. 8) e se concluiu depois, no final quando o narrador descreve como um espectador da morte do seu tetravô, a própria morte. A história do filme e do livro de Chico Buarque não tem na verdade nenhuma semelhança muito evidente. Mas se parecem em dois termos significantes principais: A prisão às reminiscências - A personagem do filme Norma Desmond mora na sua mansão no Sunset Boulevard mas vive de lembranças da glória que viveu no passado, é extremamente melancólica, também se agarrando às suas lembranças de forma quase insana – e (o que também acontece em “Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis) a Visão exterior da própria morte – No Início do filme o narrador em flashback Gills, descreve o momento em que encontram o seu próprio cadáver a boiar na piscina.

Muitas outras impressões menores, mais abstratas, eu tive lendo Leite Derramado, as que acabei de citar são por sua caracterização mais demonstráveis, o que não tem nada a ver com verossimilhança. Posso dizer que a princípio não gostei muito do livro de um modo geral. Achei-o bem escrito, gostei da linguagem e da forma mas, me parecia que faltava algo, uma espécie de finalidade que me fizesse lembrar dele depois, ao ler outros textos, como acontece com esses que me assaltaram à sua leitura. O final deu o tom que faltava, e encerrou a narrativa de Eulálio com as boas qualidades de um texto bem escrito, uma história bem urdida, que nos envolve na insanidade e nas deturpações dos valores humanos e senis de um narrador - que demonstra em si o espelho de uma sociedade – decadente: moral, física e psicologicamente.

REFERÊNCIAS

BUARQUE, Chico. Leite Derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

CAMUS, Albert. O Primeiro Homem. Tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, Maria Luiza Newlands Silveira. 1.ed especial – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido – O Tempo Redescoberto – vol 7. Livros do Brasil – Lisboa. 1998.

SARTRE, Jean Paul. A Náusea. 10 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

sábado, 23 de outubro de 2010

Vicente Veloso. Do Auto da Canabrava





Eu sou Vicente Veloso e vivo dentro dos mato

Fui escravo, fugitivo e hoje, sou livre de fato

(...)

No ano quarenta e quatro do século mil e oitocentos

Eu vivia como escravo. Trabalhando como jumento

Vivendo desesperado de tanto, tanto trabalho

Fazendo serviço pesado. Fosse noite ou sol a pino

Nunca acostumei com o fardo que tinha no couro grudado

Desde o tempo de menino

Um dia me perguntei se aquele era meu destino

Trabalhar até ficar velho. Trabalhar desde menino.

E não vê o resultado de tanto, tanto trabalho

Trabalhar até não prestar, até ser posto de lado

Pois o dono do escravo mandado do céu não é

Depois de esgotar o sujeito, quinze, vinte ano no eito

Lhe joga no meio da rua pra viver de esmolé

Pois o escravo quando velho já não guenta mais serviço

E fica veio, jogado, como fosse um estrupiço

Um trem velho mulambento, melhor não ter essa sina

Ter morrido pequenino. Um dia me perguntei se era aquele meu destino

Então, desorientei e fiquei desplaneado

Daquela minha questão arrumei o resultado

Mas fiquei matutando sem saber se o fazia

Sem saber se me matavam ali mesmo na freguesia

Mas um escravo morto era de pouca valia

Não foi de caso pensado. Não foi uma maldade.

Foi vontade de justiça dessas que anima e atiça

Que me chamou de verdade e me disse, assim, baixinho

“Vicente, sabe a verdade está aí, em tu, aí dentro

Dentro do seu coração

Tanto a sua liberdade, quanto a sua escravidão”

Então, animado e afoito eu fiquei com meu sangue quente

Recebi umas broncas do que se dizia meu dono

Que aquela minha moleza, sofria por dor de dente

Era mode uma aguardente que sumiu de sua cabana

Eu disse, não, não fui eu e não irei trabalhar

Ta vendo cá pra esse dente, assim não vou agüentar

O diabo que tale dono pensou que o velho Vicente fosse

Não julgou novo o Vicente e tentou dar-me com o açoite

Ali, mesmo, decidi: Não seria mais escravo

Não precisava de lei pra me haver libertado

Eu mesmo, preto Vicente, preto da cor de carvão

Me libertei das correntes que me prendia não o braço

Mas o coração e a mente

E a espada da justiça em forma de velho facão

Usou das minhas duas mãos e consegui minha liberdade

E dei, adeus, sem saudade para aquela escravidão

Aí, vixe, cai no mato, subi serra, desci serra

Passei lajedo, beirada que beiradeiro não beira

Passei caatinga fechada sem lavoura nem fazenda

A não ser os gado e as roça que deus do céu, mesmo inventa

Caí no mato sem rumo, caí no mato sem dó

Pois sabia que deus é grande e o mato é muito maior

(...)



Flávio Dantas Martins

domingo, 17 de outubro de 2010

Poesia I

Olho o meu caderno.. a folha nua
Diviso a limpidez que me sorri
Enquanto essa caneta não conclua
O meu verso há de ficar aqui

Invisível e luminoso eu o senti
Deflagrado na ante-escrita, uma lua
escondida numa nuvem que antevi
dissipada neste céu da boca tua.

Este verso inexistente, verso só
Que habita um não-lugar, sempre e nunca
Independe de palavras para o dizer

Inumano. Amálgama de pó
Dissidência a escorrer que não estanca
Esse sangue que redime o meu viver.

Meia Sonata

Meia sonata. Um barulho de sirene. Um olhar turvo. Um sonho. Levantar não é tão glorioso assim, o dia quase sempre começa desacreditado. Dois ou três passos iniciais, trôpegos, cambaleantes, separam o desvanecer noturno do movimento contrário do relógio, dos sons e da certeza(ou seria da incerteza?). A sujeira se condensa pelos cantos, - Preciso arrumar isso, limpar, preciso ser mais feliz, ser reconhecido, preciso ganhar muito dinheiro,... é... a sujeira fica pra depois. Esse céu que vejo parcialmente enquanto tomo café, quase que não significa nada pra mim, devo pensar nele como a última morada dos justos ou como a futura via de tráfego dos veículos flutuantes? Tanto faz. Minha condição não permite nenhum dos dois, tristes realidades ou impossíveis enganos. São as minha sopções.

Que tolo eu sou, tantas subjetividades alheias eu vivi, quantos invólucros dessas mentiras estão na minha estante que me satisfizeram pelo tempo que foi permitido em mim um abono crasso por pouco empenho. Hoje olhando a minha sustentadora de ilusões só me atrai esse pequeno busto de Gêngis Kahn feito em barro com o nariz quebrado que uso para sustentar os livros, ao menos a poeira gosta muito dele e, o livros muito mais pesados, fingem um respeito mantendo-o quase sempre na posição de quem segura alguma coisa.

Mais uma fuga. Saí hoje mesmo consciente de que isso mais me aborrece do que qualquer outra atividade banal. No caminho, as coisas, como sempre nem pareciam muito reais, não por falta de materialidade como de costume, por excesso dela. Andei até perto do lago, que na verdade não é lago, é um campinho de futebol. Mas bem que poderia ser um lago. Olhei tudo que poderia ser água e tudo que poderia ser peixe, e tudo que poderia ser respingos no meu rosto com ânsia de nadar. Isso acho que chega perto da felicidade.

“Logo, nunca nos será permitido, sempre que tratarmos de investigar as coisas, concluir algo a partir de abstrações e deveremos tomar o máximo cuidado para não misturar aquilo que existe somente no entendimento com aquilo que existe na coisa”

Sempre me lembro do que li da obra de Spinoza quando estou pensando assim. Mas eu não quero “dicatur perfecta” Spinoza. Eu não quero “quare recta iveniendi”. Eu queria xingar a tua mãe Spinoza.

Meia sonata. Passa agora pelo meu lado, intersecção do meu círculo de imaginação, uma mulher. Ainda ouço (eu queria que você soubesse). (ainda ouço) Eu queria que você me desse. (ouvindo) Eu queria que sentisse, um segundo de tempo perdido.

Literatura, engajamento e liberdade de expressão

É amplamente conhecido o “debate” célebre entre o escritor e filósofo francês Jean Paul Sartre com o também escritor Julien Benda por meio de suas obras. Enquanto Benda defende que o escritor deve se manter distante das questões sociais, Sartre por sua vez advoga em favor do profundo engajamento do escritor como fator indissociável da sua prática.

A liberdade de expressão que necessariamente seria o problema a se tratar antes de mais nada, devido a sua natureza primordial e do seu próprio exercício dar origem às expressões da qual a literatura é um exemplo, será por hora abordado depois dos outros dois pontos que dão o título ao texto. Os motivos são os seguintes: não é objetivo aqui traçar uma abordagem ontológica do exercício dessa liberdade, nem mesmo falar dos grandes empecilhos históricos à esse exercício, também porque tratando da relação entre a literatura e o engajamento a princípio, poderei depois falar sobre a liberdade de expressão especificamente incidindo sobre a literatura engajada que sendo onde ela naturalmente mais atua é aqui o nosso principal objetivo.

O lugar onde este texto se apresenta é ainda um fator de consideração e sua postura(de ambos) refletem o seu íntimo. Um "ambiente", sem fins lucrativos, que se propõe a “dizer”... mas aí já entramos na questão: que é esse “dizer”? O escritor de ficção se debate duramente com o seu texto e esse embate só termina com um rompimento, o escritor o “abandona”. Desvela-se num momento autor e obra. Sem despedida isso se dá porque é preciso e, só aí a obra "é". É o que é, pedaço de alguma coisa, símbolo do rompimento ao qual o autor se propõe a executar cotidianamente. Só assim ela se faz. Sem o signo do abandono ela é só ideia morta pois ainda de posse dos esforços concluintes do autor nunca seria “expressa”. Mas ainda aí não se responde, sobre o “dizer”. O texto não-ficcional tem uma “vida” diferente, e o autor nunca rompe com ele sem romper ao mesmo tempo com a ideia. Ao texto no jornal o autor paga o preço de manter aí, mesmo incompleta, uma força criadora ligada à origem, se ela se mantém, o texto sobrevive. Ele é incompleto, sempre dependendo do acordo que une a generosidade do autor e a do leitor, mas o autor reclama no mesmo pedido interpretativo a sua parte de significado.

Esse é o problema do “dizer”. O texto que só vem a se constituir na leitura é impingido ao autor com todas as leituras que fazem dele. Não há completude na origem, mas o autor se faz no futuro sempre responsável pelas interpretações da sua obra. Boas e ruins. Cabíveis e incabíveis.

Essa poderia ser uma boa forma de perceber o que pode causar tanto alvoroço em cima do texto escrito. Isso que dá o valor de perpetuação a ele e que assusta e encanta a uns e outros.... Mas não é exatamente isso que vem a relacionar diretamente e muito menos sustentar um texto sobre o assunto, não é por isso que Liberdade de expressão está ligada de alguma forma à literatura engajada(entenda-se a literatura engajada politicamente). A questão é tão outra, tão mais claramente superficial. Abrangente, mas os exemplos são estritamente limitados e específicos.

Assim como o texto só vem a se completar no “contato”, também o que decorre dele só se mostra com a participação do “outro”. A censura (e é isso que colocamos como problema principal ao falarmos sobre a liberdade de expressão) também só é eficaz quando alguém completa o seu ciclo, este termina sempre ou com uma submissão ou com uma insurgência. Se entendermos que a “literatura”, assim como afirma o filósofo espanhol Ortega y Gasset é “um ato de rebeldia permanente contra o contorno social, uma subversão” mais naturalmente compreenderemos o quanto mecanismos de censura tendem a fazê-la alvo de seus esforços.

Então voltamos ao caso específico da publicação em algum "ambiente"(jornal, blog, revista, livro, etc.). O leitor vê no texto uma imagem imprescindível do seu autor, legitimado logo pela “assinatura”, comumente o público que lê cria para o “ele” que assina o texto uma estrutura de posições ideológicas que deveriam convir e compactuar diretamente com a sua prática, portanto, ele cria a sua “imagem social”. Até aí tudo bem, mas o que é que percebemos, principalmente aqui ao nosso redor com o que vem a ser tomado como uma “imagem social” e principalmente o modo como o indivíduo que ela reflete “age” (deve agir)? Vemos que a postura mais comum julga o silêncio sempre preferível à afetação do outro, à indisposição com o outro. O silêncio sempre preferível à exposição de uma situação de injustiça, seja ela com o patrão, seja com a polícia, seja com a família. Silêncio. Manutenção dos problemas, do erro e da injustiça pelo silêncio, e pior, silêncio motivado pelo medo, pela ignorância ou pela conservação de uma posição “confortável”.

Neste "ambiente" onde o que se “diz” é ainda mais forte por estar posto no texto escrito, escolhemos uma postura: todos os textos são assinados, os que não têm o nome do autor logo abaixo, é porque sua assinatura está no final e é em nome de todos os que fazem parte da sua produção. Quando é opinião comum o texto não tem assinatura individual, quando a opinião não é comum a todos, ele é assinado pelo seu autor.

Sartre disse que “cada palavra é um caminho de transcendência, dá nome e forma às nossas afeições”. As palavras desses textos, dos textos que são deliberadamente engajados são assim também. Como na literatura de Dostoiévski é pelas palavras lá escritas que emprestamos as nossas angústias a Raskolnikoff, é pelas palavras sobre política, sobre a sociedade, sobre as injustiças sofridas, que esperamos que o leitor empreste os seus sentimentos sobre estas coisas, as suas experiências na individualidade para construir o significado maior, para completar a crítica, a exigência, o protesto do texto.

A censura tem o pior resultado possível, deixa o texto incompleto, ela, calando a voz do dito, o mata. Se hoje a censura é mais amena, a “quê” do leitor realmente esse texto se dirige? À censura-de-si, a autocensura. Se como afirma Sartre a obra literária é um apelo ao leitor, se é só através dele que o trabalho por meio da linguagem vai passar para a existência objetiva, é preciso que o leitor não reprima por nenhum expediente ao que nele o texto se dirige, é preciso que ele seja livre. O texto se dirige à sua liberdade leitor, e é por ela, acima de qualquer coisa, que mesmo no consenso eu assino.