domingo, 17 de outubro de 2010

Literatura, engajamento e liberdade de expressão

É amplamente conhecido o “debate” célebre entre o escritor e filósofo francês Jean Paul Sartre com o também escritor Julien Benda por meio de suas obras. Enquanto Benda defende que o escritor deve se manter distante das questões sociais, Sartre por sua vez advoga em favor do profundo engajamento do escritor como fator indissociável da sua prática.

A liberdade de expressão que necessariamente seria o problema a se tratar antes de mais nada, devido a sua natureza primordial e do seu próprio exercício dar origem às expressões da qual a literatura é um exemplo, será por hora abordado depois dos outros dois pontos que dão o título ao texto. Os motivos são os seguintes: não é objetivo aqui traçar uma abordagem ontológica do exercício dessa liberdade, nem mesmo falar dos grandes empecilhos históricos à esse exercício, também porque tratando da relação entre a literatura e o engajamento a princípio, poderei depois falar sobre a liberdade de expressão especificamente incidindo sobre a literatura engajada que sendo onde ela naturalmente mais atua é aqui o nosso principal objetivo.

O lugar onde este texto se apresenta é ainda um fator de consideração e sua postura(de ambos) refletem o seu íntimo. Um "ambiente", sem fins lucrativos, que se propõe a “dizer”... mas aí já entramos na questão: que é esse “dizer”? O escritor de ficção se debate duramente com o seu texto e esse embate só termina com um rompimento, o escritor o “abandona”. Desvela-se num momento autor e obra. Sem despedida isso se dá porque é preciso e, só aí a obra "é". É o que é, pedaço de alguma coisa, símbolo do rompimento ao qual o autor se propõe a executar cotidianamente. Só assim ela se faz. Sem o signo do abandono ela é só ideia morta pois ainda de posse dos esforços concluintes do autor nunca seria “expressa”. Mas ainda aí não se responde, sobre o “dizer”. O texto não-ficcional tem uma “vida” diferente, e o autor nunca rompe com ele sem romper ao mesmo tempo com a ideia. Ao texto no jornal o autor paga o preço de manter aí, mesmo incompleta, uma força criadora ligada à origem, se ela se mantém, o texto sobrevive. Ele é incompleto, sempre dependendo do acordo que une a generosidade do autor e a do leitor, mas o autor reclama no mesmo pedido interpretativo a sua parte de significado.

Esse é o problema do “dizer”. O texto que só vem a se constituir na leitura é impingido ao autor com todas as leituras que fazem dele. Não há completude na origem, mas o autor se faz no futuro sempre responsável pelas interpretações da sua obra. Boas e ruins. Cabíveis e incabíveis.

Essa poderia ser uma boa forma de perceber o que pode causar tanto alvoroço em cima do texto escrito. Isso que dá o valor de perpetuação a ele e que assusta e encanta a uns e outros.... Mas não é exatamente isso que vem a relacionar diretamente e muito menos sustentar um texto sobre o assunto, não é por isso que Liberdade de expressão está ligada de alguma forma à literatura engajada(entenda-se a literatura engajada politicamente). A questão é tão outra, tão mais claramente superficial. Abrangente, mas os exemplos são estritamente limitados e específicos.

Assim como o texto só vem a se completar no “contato”, também o que decorre dele só se mostra com a participação do “outro”. A censura (e é isso que colocamos como problema principal ao falarmos sobre a liberdade de expressão) também só é eficaz quando alguém completa o seu ciclo, este termina sempre ou com uma submissão ou com uma insurgência. Se entendermos que a “literatura”, assim como afirma o filósofo espanhol Ortega y Gasset é “um ato de rebeldia permanente contra o contorno social, uma subversão” mais naturalmente compreenderemos o quanto mecanismos de censura tendem a fazê-la alvo de seus esforços.

Então voltamos ao caso específico da publicação em algum "ambiente"(jornal, blog, revista, livro, etc.). O leitor vê no texto uma imagem imprescindível do seu autor, legitimado logo pela “assinatura”, comumente o público que lê cria para o “ele” que assina o texto uma estrutura de posições ideológicas que deveriam convir e compactuar diretamente com a sua prática, portanto, ele cria a sua “imagem social”. Até aí tudo bem, mas o que é que percebemos, principalmente aqui ao nosso redor com o que vem a ser tomado como uma “imagem social” e principalmente o modo como o indivíduo que ela reflete “age” (deve agir)? Vemos que a postura mais comum julga o silêncio sempre preferível à afetação do outro, à indisposição com o outro. O silêncio sempre preferível à exposição de uma situação de injustiça, seja ela com o patrão, seja com a polícia, seja com a família. Silêncio. Manutenção dos problemas, do erro e da injustiça pelo silêncio, e pior, silêncio motivado pelo medo, pela ignorância ou pela conservação de uma posição “confortável”.

Neste "ambiente" onde o que se “diz” é ainda mais forte por estar posto no texto escrito, escolhemos uma postura: todos os textos são assinados, os que não têm o nome do autor logo abaixo, é porque sua assinatura está no final e é em nome de todos os que fazem parte da sua produção. Quando é opinião comum o texto não tem assinatura individual, quando a opinião não é comum a todos, ele é assinado pelo seu autor.

Sartre disse que “cada palavra é um caminho de transcendência, dá nome e forma às nossas afeições”. As palavras desses textos, dos textos que são deliberadamente engajados são assim também. Como na literatura de Dostoiévski é pelas palavras lá escritas que emprestamos as nossas angústias a Raskolnikoff, é pelas palavras sobre política, sobre a sociedade, sobre as injustiças sofridas, que esperamos que o leitor empreste os seus sentimentos sobre estas coisas, as suas experiências na individualidade para construir o significado maior, para completar a crítica, a exigência, o protesto do texto.

A censura tem o pior resultado possível, deixa o texto incompleto, ela, calando a voz do dito, o mata. Se hoje a censura é mais amena, a “quê” do leitor realmente esse texto se dirige? À censura-de-si, a autocensura. Se como afirma Sartre a obra literária é um apelo ao leitor, se é só através dele que o trabalho por meio da linguagem vai passar para a existência objetiva, é preciso que o leitor não reprima por nenhum expediente ao que nele o texto se dirige, é preciso que ele seja livre. O texto se dirige à sua liberdade leitor, e é por ela, acima de qualquer coisa, que mesmo no consenso eu assino.

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