sábado, 23 de outubro de 2010

Vicente Veloso. Do Auto da Canabrava





Eu sou Vicente Veloso e vivo dentro dos mato

Fui escravo, fugitivo e hoje, sou livre de fato

(...)

No ano quarenta e quatro do século mil e oitocentos

Eu vivia como escravo. Trabalhando como jumento

Vivendo desesperado de tanto, tanto trabalho

Fazendo serviço pesado. Fosse noite ou sol a pino

Nunca acostumei com o fardo que tinha no couro grudado

Desde o tempo de menino

Um dia me perguntei se aquele era meu destino

Trabalhar até ficar velho. Trabalhar desde menino.

E não vê o resultado de tanto, tanto trabalho

Trabalhar até não prestar, até ser posto de lado

Pois o dono do escravo mandado do céu não é

Depois de esgotar o sujeito, quinze, vinte ano no eito

Lhe joga no meio da rua pra viver de esmolé

Pois o escravo quando velho já não guenta mais serviço

E fica veio, jogado, como fosse um estrupiço

Um trem velho mulambento, melhor não ter essa sina

Ter morrido pequenino. Um dia me perguntei se era aquele meu destino

Então, desorientei e fiquei desplaneado

Daquela minha questão arrumei o resultado

Mas fiquei matutando sem saber se o fazia

Sem saber se me matavam ali mesmo na freguesia

Mas um escravo morto era de pouca valia

Não foi de caso pensado. Não foi uma maldade.

Foi vontade de justiça dessas que anima e atiça

Que me chamou de verdade e me disse, assim, baixinho

“Vicente, sabe a verdade está aí, em tu, aí dentro

Dentro do seu coração

Tanto a sua liberdade, quanto a sua escravidão”

Então, animado e afoito eu fiquei com meu sangue quente

Recebi umas broncas do que se dizia meu dono

Que aquela minha moleza, sofria por dor de dente

Era mode uma aguardente que sumiu de sua cabana

Eu disse, não, não fui eu e não irei trabalhar

Ta vendo cá pra esse dente, assim não vou agüentar

O diabo que tale dono pensou que o velho Vicente fosse

Não julgou novo o Vicente e tentou dar-me com o açoite

Ali, mesmo, decidi: Não seria mais escravo

Não precisava de lei pra me haver libertado

Eu mesmo, preto Vicente, preto da cor de carvão

Me libertei das correntes que me prendia não o braço

Mas o coração e a mente

E a espada da justiça em forma de velho facão

Usou das minhas duas mãos e consegui minha liberdade

E dei, adeus, sem saudade para aquela escravidão

Aí, vixe, cai no mato, subi serra, desci serra

Passei lajedo, beirada que beiradeiro não beira

Passei caatinga fechada sem lavoura nem fazenda

A não ser os gado e as roça que deus do céu, mesmo inventa

Caí no mato sem rumo, caí no mato sem dó

Pois sabia que deus é grande e o mato é muito maior

(...)



Flávio Dantas Martins

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